top of page

Um texto para NORTADA

Deus esquecendo e esquecido

 

Agora já não basta confiar em que Deus se lembre de nós

Peter Sloterdijk, Morte Aparente no Pensamento

 

Deus não tem rosto, tem imagem. Como ser supremo, extensível a todas as culturas humanas, dos politeísmos orientais aos mitos pagãos aborígenes, admite e não admite ser representado, deseja e não deseja a idolatria, esconde-se e revela-se na invisibilidade visível do tempo. Criador e criatura não mais separados. A iconografia torna-se detalhe estético profundo, a blasfémia transforma-se no cálice da virtude. Na essência do esquecimento reside a existência. Deus esqueceu-se de nós, tal como nós nos esquecemos de Deus. É uma dialéctica fatal e revitalizante. Entre lembrar e esquecer está o mundo, a soberania da arte. A natureza dispõe da sua ordem por via da inteligência e da necessidade biológica.

Ludgero Almeida apresenta, de 29 de Março a 3 de Maio, O esquecimento de Deus, no espaço Silo (arquitectura semelhante a um panteão, em forma circular, aludindo a uma cripta de holocaustos e adorações contemporâneas, como afirma Elisa Santos em texto de folha de sala), conjunto de pinturas produzidas num período escasso de cinco meses e elaboradas a partir de fotografias que o autor adquiriu na Feira da Vandoma, normalmente apócrifas, que oscilam entre a monocromia e a policromia, sugerindo a ténue aproximação do sagrado com o profano, num registo subversivo e provocador que narra a essência do humano, a estética do ritual, o re-ligar dos fenómenos e das mitologias, a omnipresença dos espíritos e a perpétua performatividade dos corpos. O quotidiano é o sagrado, na exacta medida em que o homem é o pintor dos seus próprios deuses, seja adorando os elementos naturais na aurora dos séculos, seja ungindo a técnica e a ciência a redenções contemporâneas. E essa dicotomia baseada na correspondência entre Terra e Céu é evidente em obras várias como Fim da hierofania de um Deus Uraniano, um homem celebrando a expiação ritual de um deus-animal (o traço pictórico parece dialogar com a técnica de Paula Rego), Baptismo ingénuo, sublinhando a água como fonte primordial de iniciação ao divino, sendo o filho quem baptiza a mãe, numa óbvia inversão dos cânones, Ladrões de maçãs, no qual se procura confundir a ideia de pecado e de castigo com a regra vital da sobrevivência e da subsistência, reforçada pela jovialidade e candura das crianças, e ainda Não é nada, apenas flores ou um corpo divino, título ousado, visto que a troca e a generosidade representadas através dos gestos das raparigas é um pormenor marginal, um pequeno nada, que é tão trivial quanto sagrado, pela nobreza simples do seu sentimento. Veja-se ainda Deserto interrompido, imagem que se inspira numa fotografia de uma viagem de regresso da Alemanha realizada pelo pai de Ludgero Almeida na década de 70, uma recomposição, dir-se-ia, da história bíblica do Êxodo, da libertação fundamental de um povo e da sua posterior emigração para a pátria de ouro, e também Chorar por nada, em que a dimensão erótica do corpo colabora com uma certa oração esvaziada de sentido litúrgico.

Uma tela em grande escala exposta no piso inferior, Corpos sentados para um espírito que dança, sintetiza toda esta mostra de pintura. O sagrado que é convocado num ritual colectivo, impregnado de um movimento quase cinematográfico, o espírito dançando no centro da imaginação, uma emoção de êxtase que devém da revelação do oculto, e o profano assumido por quem assiste a esta cena de contornos devocionais, o espectador que vê e observa o espectáculo (o espelho, no sentido etimológico) da imaginação infinita, do chamamento de um deus que surge irrevelável. Entre esquecer e lembrar há o tudo e o nada, o criador e a criatura que, no fundo, são o verso e o reverso de si mesmo.

 

Joaquim P. Marques Pinto (Abril de 2015)        

http://a-nortada.tumblr.com/post/116037196628/deus-esquecendo-e-esquecido-joaquim-p-marques   

bottom of page